Grêmio

ENTREVISTA

"Eu não sou Pep Guardiroger"

Saiba por que Roger, sensação da Série A, rejeita comparações com o melhor do mundo

postado em 31/08/2015 11:14 / atualizado em 31/08/2015 11:29

Lucas Uebel/Gremio FBPA

Quer tirar Roger Machado Marques do sério? Brinca de chamá-lo de Pep Guardiroger — como parte da torcida carinhosamente apelidou um dos técnicos sensação do Campeonato Brasileiro. Em entrevista por telefone ao Correio, o treinador de 40 anos interrompeu o trocadilho dizendo: “Não gosto, não gosto”. No bate-papo, ele explica o motivo da revolta com o apelido que pegou e se define como “Roger Machado, um treinador brasileiro”. Viciado em apertar o botão FF do controle remoto para transformar 90 minutos de jogo em 45, o treinador tem outros diferenciais. Na véspera da vitória pela Copa do Brasil, tinha três livros na bolsa, um deles, Inteligência Emocional, de Daniel Goleman, e Os Campeões — por dentro da mente dos grandes líderes do futebol, de Mike Carson.

Estudioso, Roger Machado preferiu cursar educação física na Sogipa em vez de entrar de cabeça na carreira de técnico. Foi auxiliar, entre outros, de Luiz Felipe Scolari, no Grêmio, mas não se contentou com pouco. Por mais de um mês, rodou a Europa em um estágio no Chievo e assistiu in loco a jogos nas principais ligas do mundo. Tudo isso para cumprir uma missão: “Os jogadores brasileiros são uma Ferrari engatada em segunda e eu me sinto responsável por inquietá-los”, brinca o arquiteto do gol coletivo mais bonito da Série A em um tiki-taka à la Pep Guardiola.


Você tem 40 anos, é um técnico jovem. Como foi a rápida transição para a nova profissão?
Eu queria ter jogado até os 35 anos. Encerrei a carreira (aos 33) por causa de um problema na coluna. Fiz vestibular e passei para educação física. Melhorei, tranquei o curso e fui jogar no DC United (EUA), mas tive outra crise de hérnia de disco. Quando parei de vez, passei um tempo com a minha família, planejei a transição e fui buscar na educação física elementos que hoje possibilitam fazer o meu trabalho. Eu era o aluno mais velho. Quando você convive com pessoas mais jovens, isso deixa a cabeça aberta para muitas coisas.

Como por exemplo...
Fiz curso de gestão esportiva para compreender como funciona fora de campo. Busquei conhecimento na psicologia do esporte, na gestão de grupo e uso um pouco de cada coisa no meu dia a dia. Ao mesmo tempo em que fiz tudo isso, eu era auxiliar permanente do Grêmio. Só pedi para sair quando recebi o convite do Juventude. Era hora da última etapa do processo, que era virar treinador.

Mas, antes disso, você acumulou milhas na Europa...
Fiz um estágio no Chievo, da Itália, a convite do Adaílton, ex-jogador do Juventude. Um relacionamento foi puxando outro. Fui ver o Paris Saint-Germain, mandei uma mensagem para o Marcelo e ele arrumou dois bilhetes para eu assistir a Real Madrid e Barcelona. Consegui ingresso para ver Crystal Palace e Sunderland.

Quanto tempo de intercâmbio?
Foram 33 dias de viagem, além do período de observação no Chievo. Vi in loco 9 ou 10 jogos em Portugal, Espanha, Inglaterra, França e Itália. Estava lá no 7 x 1 do Bayern de Munique em cima da Roma. Escolhi ver jogo de time grande contra grande, médio contra médio, pequeno contra pequeno, para ter uma amostragem maior. No início do ano, assumi o Novo Hamburgo. Fiquei à espera da movimentação do mercado e agora aqui estou eu, no Grêmio.

Você se define como vendedor de ideias?
Eu tenho um conceito de time, um modelo de jogo e os meus conceitos. Eu personalizo isso no meu dia a dia. Eu tenho que expor isso aos jogadores e convencê-los.

Ao que parece, o Grêmio entendeu rápido...
Eu nasci jogador de futebol e vou morrer jogador de futebol. Eu tenho facilidade do ponto de vista da linguagem porque eu vivi muito tempo dentro de campo. Mais importante do que isso é notar que, hoje, nós temos uma geração de jogadores interessados em aprender. Hoje, o jogador questiona o treinador. Eles estão interagindo. Eu era muito questionador, perguntava tudo. Hoje, o meu papel é elevar o nível do meu atleta todos os dias. Os jogadores brasileiros são uma Ferrari engatada em segunda e eu me sinto responsável por extrair o máximo deles.

O Braian Ruiz fez você inventar um novo sistema de treino?

Teve um treino que eu preparei e tinha duas traves que seriam da próxima atividade. Era uma posse de bola e as traves estavam preparadas para a próxima. E o Braian entendeu diferente, roubou a bola e finalizou. Eu disse: “Ô, Braian, acho que tu me deu um treino”. Pode deixar que vou dar crédito, vai ter o “treino Braian”. Ele entendeu que estava ali a trave, que era roubar e finalizar. Ficou interessante. Tudo isso, com várias coisas, me dá elementos.

Lucas Uebel/Gremio FBPA
Galhardo, Douglas, Giuliano são caras que estão voando com você...
Nós recuperamos o potencial do Rafael Galhardo. Pouca gente lembra, mas é um jogador com passagem pela Seleção de base. Nós só resgatamos o nível de futebol dele. O Douglas é outro exemplo. Eu pedi que ele não viesse buscar a bola tão lá atrás, às vezes, nos pés dos volantes, e que ficasse mais perto do gol para aproveitar os chutes, o passe final, os lançamentos de meia distância.

Douglas reagiu bem ao toque?
Do ponto de vista defensivo, eu disse a ele que, se buscasse a bola nos volantes e errasse o passe, eu o obrigaria a marcar. Ao passo de que, perto do gol, ele está definindo o lance para mim e outro que estiver mais recuado assume essa função de marcar. Eu disse a ele para ser mais inteligente com esses movimentos, para tentar ser mais producente e ele entendeu.

As ideias surgem assistindo a jogos em velocidade dobrada?
É importante saber o que está acontecendo no mundo. Às vezes, eu vejo algumas coisas em outras ligas que me dão ideias diferentes para uma sessão de treino, para um movimento tático diferente. Eu consigo ter ideias para apresentar ao jogador uma dinâmica diferente, por exemplo, para romper uma defesa. Eu tenho facilidade para ver o jogo em alta velocidade. Altero a rotação do jogo em duas vezes, assistir a um jogo inteiro em 45 minutos e isso não me impede de enxergar o que quero.

A linha de passe no golaço diante do Atlético-MG foi inspirada no Barcelona, no Bayern?
Foi resultado do que trabalhamos nos treinos, de um conceito de jogo. Aquilo é resultado das coisas que exijo do time: posse de bola, saída-apoio, ou seja, evolução apoiada por um companheiro; contra-ataque com poucos toques — o máximo que demos naquele gol foram: dois toques; a troca de corredor, com a retomada da bola em um lado do campo e a conclusão do outro, mudando a zona de pressão; amplitude do posicionamento, com um jogador muito aberto; e superioridade numérica no ataque. Nosso gol foi em um quatro contra três.

Agora, você é o “Pep Guardiroger”...
Não gosto, não gosto (interrompe). Essas comparações são muito cruéis. Apelidos pesam na hora de um momento de instabilidade e viram piada. Eu levo o futebol muito a sério e não permito esse tipo de brincadeira. Meu nome é Roger Machado, um treinador de futebol (silêncio).

Você jogou 17 anos e teve mais de 30 técnicos. Quem é o seu mestre?
Com alguns você aprende o que fazer e com outros o que não fazer. O Felipão foi importante na minha carreira, mas eu era muito jovem, queria sobreviver e não assimilei os ensinamentos táticos dele. Quando amadureci, aprendi com um cara que eu chamo de mestre, que é o Tite. Ele é o cara que estou sempre prestando atenção para ver o que ele faz.

O que você aprendeu com o Felipão que não se deve fazer depois daquele 7 x 1 na Copa do Mundo?
Não quero entrar no mérito do certo ou errado. Aquele foi um jogo atípico. O Brasil jogava em casa, pressionado por uma conquista, com a sombra de 1950. Isso tudo teve um peso grande. Eu assisti como torcedor. Com 20 minutos de jogo, eu saí de frente da tevê. Não vi mais. Eu imaginava que nós teríamos dificuldades, principalmente por causa da forma que o Brasil começou a partida.

O Grêmio sempre foi um time de força, raça, pegada, mas o seu time joga bonito. É uma revolução?
Não quero mudar, só acrescentar. Todo clube tem a sua raiz. Os times em que eu joguei no Grêmio eram de marcação, competitividade, mas o momento é diferente.

Você faz sucesso no Grêmio, mas saiu do Juventude com 51% de aproveitamento...
Número engana. Não podemos analisá-lo de forma fria, é preciso contextualizá-lo. No Juventude, assumi um time ameaçado pelo rebaixamento, nos classificamos para o mata-mata e perdemos nos pênaltis para o Grêmio. Na Série C, estávamos invictos em segundo lugar quando houve a pausa para a Copa. Quando voltou, perdemos duas partidas e fui demitido. Ainda assim, deixei o time em terceiro lugar.

Até que ponto a identificação com o Grêmio ajuda no teu trabalho?
Isso me ajuda a fazer a leitura adequada do time. Eu passei quase toda a minha vida de jogador aqui dentro. Tem meninos que fazem parte do meu time hoje que eu acompanhei bem quando fui auxiliar técnico e isso faz com que eles rendam mais para mim. Por conhecê-los, posso mudar as características dentro de um jogo.

Isso ajuda no sucesso do Luan?
Quando fui auxiliar técnico, uma das minhas funções era acompanhar o desenvolvimento dos garotos. O Luan jogou como centroavante na base. No profissional, é que ele foi deslocado para o lado. Eu só coloquei o Luan para fazer o que sempre fez, ou seja, jogar perto do gol. Isso foi bom para o time e principalmente para ele.

Você teme que esta identificação com o Grêmio atrapalhe a sua sequência na profissão quando deixar o clube? O Andrade, por exemplo, levou o Flamengo ao título brasileiro de 2009 e não teve mais chance em time grande.
O curso de educação física que eu fiz não foi para eu trabalhar só em futebol. Não foi para me moldar a trabalhar apenas no Grêmio. Estou preparado para trabalhar com futebol. A minha identificação facilita o trabalho no Grêmio, mas eu não tenho receio nenhum quanto ao futuro. Eu me capacitei para trabalhar no Grêmio, no Brasil ou em qualquer parte do mundo. A minha passagem pelo Grêmio, na verdade, me valoriza. Da mesma forma como foi no Fluminense. Tenho identificação lá.

Você é amigo dos livros. Qual é a literatura da vez?
Não sou de ficar preso a um livro específico. Na concentração, eu tenho três. Estou lendo Inteligência emocional, do Daniel Goldman; Os campeões, de Mike Carson, sobre a mente dos grandes líderes do futebol, como José Mourinho, Carlo Ancelotti...; e um livro inglês que fala sobre ataque e sistemas táticos de futebol. Leio um capítulo de um, no outro dia pego um pouco do outro, não sou de ficar preso a um só até terminar.

No Brasil, vários técnicos reclamaram de injúria racial. Lula Pereira, Andrade e mais recentemente o Cristóvão Borges, no Flamengo. Você já foi vítima?

Eu nunca sofri em relação a isso. Nos tempos de jogador, fui atuar em alguns lugares e ouvi alguns tipos de ofensa, mas não foi nada que eu considerasse racismo. No Brasil, há preconceito social e racial, mas eu não vivi isso e nunca me atrapalhou a chegar onde estou hoje, sempre fui respeitado.

Você jogou na Seleção Brasileira. O sonho, agora, é treiná-la?

Eu tenho uma ideia de parar com o futebol aos 55 anos. Até lá, eu espero concluir essa maratona e atingir esse objetivo.

E a sua famosa chuteira branca, continua usando nos treinos?
A chuteira branca ainda é um resquício do tempo de jogador, continuo usando, sim (risos).