Futebol Nacional

Cegos, surdos e mudos

Violência que acompanha o futebol sempre foi tratada com paliativos

postado em 18/02/2013 11:00 / atualizado em 18/02/2013 11:21

Marcel Tito /Diario de Pernambuco

Houve um tempo no Recife em que torcidas rivais podiam sair às ruas para ver o seu time jogar na mesma tarde de domingo. Podiam até frequentar a mesma arquibancada. As cores eram suficientes para separar os rivais. Tempo em que confusões até existiam, mas suas consequências se limitavam aos clarões abertos na multidão. Eram dissipadas pelos próprios torcedores. Tempo que deixou de existir. “Coincidentemente”, a partir do crescimento de algumas torcidas organizadas. Da subversão das cores. Época extinta com a bênção de quem tem a obrigação de combater o problema, e continua assistindo, inerte, à sua expansão pela cidade.

Nem é preciso voltar tanto no tempo. É fácil encontrar relatos de quem, na década de 1980, assistiu a clássicos ao lado de torcedores do time rival. Vieram as coincidências. Em 1984, surgiu a Fanáutico. Em 1992, a Inferno Coral. Em 1995, a Torcida Jovem. E, a partir da década de 1990, os torcedores passaram a ocupar locais distintos nos estádios. Logo a medida se tornou ineficaz. E a separação das grades ganhou a companhia do tempo. Jogos no mesmo horário passaram a ser evitados. Dois era o limite. Enquanto paliativos eram implantados, essas organizadas cresciam. Tornaram-se as maiores dos seus clubes, as mais famosas. E desvirtuaram o significado de torcida.

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Foram além. No início da década de 2000, apresentaram à cidade um outro viés do futebol: das tragédias provocadas pela intolerância e estupidez. Em 18 de março de 2001, num confronto entre integrantes da Fanáutico e da Jovem, Daniel Ramos da Silva, 17 anos, foi atingido por dois tiros, um na cabeça outro no peito. Daniel, que era integrante da uniformizada do Sport, foi levado para o Hospital da Restauração, mas não resistiu. Tornou-se a primeira vítima de uma história que poderia ter acabado ali, naquele ano. Não acabou.

Outro “apelo” para dar um basta no cenário de violência crescente veio em abril de 2007. Numa partida que nada valia, pois o Sport já havia sido campeão, Veronaldo Silvino da Silva, na época com 21 anos, andava pela avenida Professor José dos Anjos, no Arruda, quando foi atingido na cabeça por uma pedra lançada do anel superior do José do Rego Maciel. Enquanto era socorrido por amigos, a Inferno Coral cantava no estádio: “Não é mole não. Antes do jogo já morreu um alemão”. Cantava em coro, em referência à organizada do Sport - Veronaldo estava com a camisa da Jovem. “Quem atirou a pedra que atingiu Veronaldo devia estar cantando com o seu exército. Impune e sem qualquer peso na consciência, muito provavelmente”, diz um trecho da matéria do Diario da época. Veronaldo sobreviveu ao episódio. Apenas sobreviveu. As sequelas o prenderam a uma cadeira de rodas e a um aparelho de respiração artifical. Sem fala, sem movimentos.

De fato, nada aconteceu. E nada mudou. Só aumentou. Ao ponto de, no ano passado, integrantes da Torcida Jovem e Fanáutico travarem um duelo no centro da cidade, no fim da tarde. Um dia sem jogo. Um dia comum. Como, aliás, deveria ter sido o sábado de Lucas de Freitas Lyra. Um dia comum de futebol. De festa. Mas a violência relacionada ao futebol, aqui, é combatida com combinação de horários, com o pedido de um cadastro inútil que nunca saiu, com propostas isoladas e contundentes sendo barradas por interesses econômicos. Todos estão cegos, surdos e mudos. Menos os loucos, que, nesta capitania da terra do futebol, são aqueles que acham que a paixão de ver o seu clube jogar vale o risco de não voltar para casa.