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ESPECIAL CACARECO

Estilo militar, aulas de hino, falha no avião e problema no bicho: os bastidores da Cacareco

Detalhes do torneio em que Pernambuco foi o Brasil são recontados

postado em 15/06/2015 08:00 / atualizado em 02/06/2016 20:02

Brenno Costa /Diario de Pernambuco , Alexandre Barbosa /Diario de Pernambuco

Arquivo pessoal/Givaldo
A passos ainda firmes aos 84 anos, Zé Maria rompe um corredor escuro. De imediato, o sol lhe reapresenta um cenário muito diferente. Mas com uma atmosfera familiar. “Vou entrar com o pé direito”, diz. É quando o ex-volante pisa no gramado do Arruda e faz uma volta no tempo. Foi lá - quando o local ainda era chamado de Alçapão, com arquibancadas de madeira e campo na posição inversa a atual - que a Seleção Cacareco iniciou a preparação para virar o Brasil e disputar a Copa América Extra de 1959, no Equador.

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>>>Capítulo 3: Canarinho vira Cacareco: a origem do apelido para a Seleção só de pernambucanos
>>>Capítulo 4: Clique aqui e veja a galeria de fotos narra a trajetória completa da Seleção Cacareco
>>>Capítulo 5: Zé Maria, Givaldo e Fernando: relatos e a história de quem esteve com a Seleção
>>>Capítulo 6: Webreportagem relembra a trajetória da Seleção Cacareco com depoimentos. Assista!

Arquivo/DP/D.A Press
A convocação: jogadores do Íbis e atletas de fora do estado
A casa do Santa Cruz foi o ambiente que iniciou uma série de histórias curiosas. Hoje, empoeiradas e desconhecidas. Muitas delas, foram encabeçadas pelo técnico Gentil Cardoso. O treinador atraiu para si os holofotes antes mesmo dos treinamentos iniciarem. Primeiro, ele decidiu elaborar uma lista inicial com 35 atletas. Entre os nomes divulgados, estavam jogadores do Íbis, Ferroviário e Asas.

No entanto, o grupo foi fechado com 22 nomes apenas de Sport, Náutico e Santa Cruz. Na verdade, quatro deles foram trazidos de São Paulo pelo presidente da Federação Pernambucana, Rubem Moreira, para reforçar o escrete Cacareco - um quinto, Jovelino, trazido por empréstimo para o Íbis, não ficou na lista final. Para o Santa Cruz, vieram o volante Servílio, o ponta direita Goiano e, posteriormente, o zagueiro Edson. Para o Náutico, o atacante Paulo. Nenhum deles, porém, chegou a jogar pelos clubes. Até treinaram alguns dias, mas não puderam entrar em campo.

O Sport alegou que os jogadores dos rivais haviam sido inscritos após o prazo e entrou com uma representação na Federação Pernambucana. O pedido foi acatado e a inscrição deles no Campeonato Pernambucano foi vetada. “No fim das contas, eles sequer jogaram nos times. Eram contratos paraguaios. A Federação não poderia pagar um salário sem ter um time. Ela tinha o direito de ter uma seleção convocando atletas do clubes filiados”, lembra o jornalista Lenivaldo Aragão.

“No fim das contas, eles sequer jogaram nos times. Eram contratos paraguaios. A Federação não poderia pagar um salário sem ter um time. Ela tinha o direito de ter uma seleção convocando atletas dos clubes filiados”, lembra o jornalista Lenivaldo Aragão.

O terno que revelou parte da lista
Na época, a convocação final era aguardada com ansiedade. Parte da curiosidade foi dissipada de maneira inusitada. O Diario de Pernambuco, em novembro de 1959, publicou uma matéria com dez jogadores que tiveram seus ternos para viagem autorizados a serem confeccionados pelo técnico Gentil Cardoso na Alfaiataria Mônaco. Entre eles, estavam Zé Maria - então volante do Sport. Os outros nove nomes foram: Walter (goleiro), Edson (zagueiro), Dodô (meio-campo), Biu (meio-campo), Tião (atacante), Paulo (atacante), Moacir (atacante), Clóvis (meio-campo) e Zequinha (zagueiro).

Arquivo/DP/D.A Press
Estilo militar: cabelo raspado e oficial da concentração
Dentro do campo de jogo, o estilo de Gentil Cardoso também foi imposto de maneira peculiar. O treinador, apesar de ser conhecido como um grande estudioso do esporte, decidiu inovar adotando medidas de caráter militar junto aos jogadores.

“Gentil veio da Marinha. Já era outra modalidade. Nós éramos jogadores de futebol. Então, ele obrigou a gente a cortar o cabelo no estilo militar e a aprender o hino nacional. Coisas diferentes que a gente não sabia”, relembra Zé Maria. “Ainda tivemos que viajar de terno. Ele era uma pessoa bastante exigente”, completa o ponta esquerda Fernando José, aos 79 anos e então atleta do Náutico.

Além do estilo diferente, os jogadores tiveram que estudar outros fundamentos além do futebol. Gentil Cardoso levou um maestro aos treinos para ensinar o hino nacional. Ele ainda deu aulas sobre a história do Brasil com a intenção de que os atletas representassem bem o país também com as palavras.

Outra medida curiosa foi a criação do oficial do dia na concentração. Ele era responsável por fiscalizar o que estava faltando para o elenco e até questões de horário. “Essa pessoa tinha que tomar conta de tudo na concentração e depois tinha o caderno de registro para fazer as observações do plantão do dia”, conta o ex-lateral esquerdo Givaldo.

O susto no caminho até o Equador
O caminho até a cidade de Guaiaquil, no Equador, ficou mais longo. De maneira inesperada. Às 6h30, de 30 de novembro de 1959, a Seleção Cacareco deixou o Rio de Janeiro após um período de preparação de três dias com destino ao local do Sul-Americano Extra. Uma hora depois, contudo, o avião da Panair aterrissava em São Paulo. Destino errado.

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“Era um quadrimotor naquela época. Aí deu um pipoco. A aeromoça fez: ‘Meu Deus do céu’. Quer dizer, todo mundo começou a ficar com medo. A gente teve que regressar. Teve jogador que estava dormindo, quando chegou, pensou que já estava no Equador”, lembra Fernando José. "Eu estava fazendo a barba no banheiro. Quando voltei para sentar, estava aquele clima tenso. Veio um comissário e disse para a gente ficar tranquilo. Dois motores haviam parado. Nós tivemos que voltar para o Rio de Janeiro", acrescenta Givaldo.

No Equador, amizade com uruguaios e questionamento de bicho
A campanha regular da Cacareco na Copa América teve poucos episódios de atrito. Um, no entanto, acabou sendo exposto nas páginas do Diario de Pernambuco. Após vencer o Paraguai na estreia do Sul-Americano por 3 a 2, o Brasil encarou o Uruguai. Perdeu por 3 a 0 e um problema foi exposto.

“Uma simples vitória revelou o espírito mercenário dos defensores da camiseta canarinha”, escreveu o jornalista Adonias de Moura, enviado especial do Diario de Pernambuco. A questão era diretamente ao valor pago aos jogadores pela vitória na primeira partida, o chamado bicho. Antes de encarar a Celeste, o grupo não gostou do dinheiro recebido.

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Após 55 anos, Zé Maria e Fernando José recontam o caso. “A gente reuniu e, na verdade, achou o bicho baixo. Foi o próprio Gentil que reclamou e pediu para a gente pedir um pouco mais”, diz Fernando José. “Geraldo (meio-campista) não guardava nada. Aí Jaime (de Brito Bastos), que era o tesoureiro, veio com os papéis para a gente assinar, e ele disse que não iria assinar nada porque Gentil tinha falado do valor. Jaime disse que Gentil já tinha recebido o dele. Estava só querendo mais”, conta Zé Maria.

O valor do bicho, segundo relato do Diario de Pernambuco na época, era de dez dólares para cada jogador. Em valores atuais, algo em torno de R$ 35. No fim, o atrito foi solucionado e a Cacareco fez uma campanha regular, terminando na terceira posição atrás do campeão Uruguai e da Argentina.

 

A lista de convocados
Goleiros: Walter (Santa Cruz) e Waldemar (Náutico)
Zagueiros:
Edson (Santa Cruz) e Zequinha (Náutico)
Laterais:
Bria (Sport), Giroldo (Santa Cruz), Dodô (Santa Cruz), Givanildo (Náutico) e Givaldo (Náutico)
Meio-campistas:
Zé Maria (Sport), Biu (Santa Cruz), Elcy (Sport), Clóvis (Santa Cruz) e Servílio (Santa Cruz)
Atacantes:
Traçaia (Sport), Tião (Santa Cruz), Geraldo (Náutico), Zé de Melo (Santa Cruz), Elias (Náutico), Fernando José (Náutico), Goiano (Santa Cruz) e Paulo (Náutico)