Futebol Internacional

MARADONA

Malvinas, Revolução Cubana, Drogas e Fé: a trajetória fora de campo de Diego Maradona

Em sua despedida do futebol, em 1997, o craque argentino deixou claro que seus problemas extra-campo não mudam a história que ele teve nos gramados

postado em 25/11/2020 17:10 / atualizado em 25/11/2020 18:58

(Foto: Divulgação)
O escritor Albert Camus uma vez disse que devia ao futebol tudo conhecido por ele sobre as obrigações e moral do homem. A trajetória de Diego Armando Maradona, tão absurda quanto a obra do romancista, misturou os três elementos ditos pelo argelino. Fora dos gramados, a vida de El Pibe de Oro foi marcada pelo esgotamento e obrigação de carregar o peso de sua própria personagem, a mais humana já vista no futebol. 

Da redenção argentina ante os ingleses no Mundial de 1986 às internações que quase resultaram na morte do craque: o registro de Maradona longe das quatro linhas é do tamanho das conquistas que o tornaram Santo em Buenos Aires, Nápoles e Barcelona. A devoção à Diego Maradona superou qualquer limite físico e fez surgir, em 1998, do sincretismo entre arquibancada e cristianismo, a Igreja Maradoniana.

Milhares de cientistas sociais mundo afora buscam compreender o papel fundamental da religião na vida humana. Na Igreja Maradoniana, o principal objetivo dos cultos e festejos realizados está claro entre os milhares de fiéis Maradonistas: não esquecer dos milagres que Diego realizou à frente de todos. Dos fenômenos protagonizados pelo mais humano dos deuses, como bem definiu o escritor uruguaio Eduardo Galeano, o gol que redimiu a Argentina quatro anos depois de perder cerca de 700 jovens soldados na Guerra das Malvinas foi o mais fantástico.

No dia 22 de junho de 1986, num abarrotado Estádio Azteca, o camisa 10 balançou as redes duas vezes: a primeira, driblando metade do time inglês, e, a outra, o impossível gol de mão. Diante dos inventores do futebol, a qualificação para a semifinal da Copa do Mundo do México representava a redenção dos valores nacionais dos argentinos - que sofriam, à época, com pobreza, fome e um país destruído pela ganância e corrupção dos militares que lideraram, entre 1976 e 1983, a última ditadura argentina. Levantada a taça do Mundial, Maradona dedicou a vitória à classe trabalhadora, e fez questão de se distanciar dos militares, que outrora utilizaram o esporte mais popular do mundo para propagandear as ideias do regime que por sete anos violou direitos humanos na Argentina.

Identificado com os valores políticos da esquerda, Maradona levou sua militância ao campo internacional e manteve relações com diversas lideranças progressistas latino americanas, como Lula, Dilma, Hugo Chávez e Cristina Kirchner. Em seu corpo, tem tatuado as faces de Fidel Castro e Che Guevara, líderes da Revolução Cubana. Até a morte de Fidel, em 2016, Diego tinha uma relação próxima com o ex-primeiro ministro cubano - após passar por reabilitação contra dependência química, em Cuba, o craque afirmou que Castro, morto há exatos quatro anos, junto à Deus, era a razão dele estar vivo.

Em 2000, Maradona iniciou o tratamento contra as drogas, em Cuba. Após sofrer overdose de cocaína em Punta del Este, cidade balneária do Uruguai, ele foi internado em uma clínica particular. Com um quadro de arritmia ventricular e hipertensão arterial, Diego pela primeira vez viu a morte próxima e decidiu se mudar para Cuba e usufruir da privacidade e medicina que a ilha caribenha disponibilizava.

Quatro anos depois de sofrer sua primeira overdose, Maradona mais uma vez driblou a morte. Dessa vez, o craque passou mal após uma partida entre Boca Juniors e Nueva Chicago, na Bombonera, e foi levado às pressas para o hospital com problemas cardíacos e infecção pulmonar. Diversas informações extraoficiais surgiram na imprensa e sugeriam que Diego havia se drogado - e, por isso, acabou, mais uma vez, internado por conta da cocaína. A família Maradona, porém, fez um apelo para que a situação fosse tratada com ‘seriedade’ pela mídia.

MARADONA NA CULTURA


Seja no cinema, como o filme palestino As Pernas de Maradona, em cartaz no Festival CineFoot, seja na música, haja vista que El Pibe foi importante pilar para o rock argento da década de 1980, as jogadas do eterno camisa 10 de Boca, Napoli e Barça inspiraram milhares de artistas mundo afora. Apaixonado por Cumbia Villera e Tango, gêneros portenhos, Maradona foi tema de canções de artistas variados, como o trapper espanhol WE$T DUBAI e o lendário roqueiro argentino Charly García, que compôs a música Maradona Blues.

Charly, além de homenagear o craque com a composição, durante os dias de pandemia escreveu uma carta direcionada à casa de Diego, em Brandsen, província de Buenos Aires. Sem apelar à tecnologia, o ex-vocalista da Sui Generis emocionou Diego com a texto escrito à mão.

“Querido amigo: eu passei por internações as quais gastei dois ou três anos da minha vida escutando psicólogos que negam as 'pessoas diferentes'. É impossível que compreendam. Aqui vai um conselho: seguir o que eles falam é uma estupidez e lembre-se que você é um gênio, que todos te amam. Conta comigo. Charly.”

Em 1997, quando Diego Maradona, em sua última partida vestindo azul e ouro, na Bombonera, disse que “el potrero y la pelota no se manchan” - deixando claro que seus problemas pessoais não mudam a história que ele fez em campo -, El Pibe foi poeta. Quem observou isso foi Eduardo Galeano, escritor e jornalista devoto do craque. O Uruguaio, em seu livro Futebol Ao Sol e à Sombra, escreveu um capítulo somente para o seu ídolo argentino. Argumentando que Diego foi o mais humano dos deuses, Eduardo sintetizou, como quem escreve poesia em formato de prosa, o que Maradona fez nos quase 20 anos de carreira.

“Maradona é incontrolável quando fala, mas muito mais quando joga: não há quem possa prever as diabruras deste criador de surpresas, que jamais se repete e goza desconcertando os computadores. Seus malabarismos inflamam o campo. Ele pode resolver uma partida disparando um tiro fulminante de costas para o gol ou servindo um passe impossível, de longe, quando está cercado por milhares de pernas inimigas”