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Que Íbis é esse? O 'Pior Time do Mundo' contradiz o seu DNA e busca sequência inédita

O Pássaro Preto está 100% na Série A2 do Pernambucano e pode vencer quatro vezes consecutivas pela primeira vez em sua história

postado em 30/09/2017 08:00 / atualizado em 29/09/2017 20:59

Peu Ricardo/DP
Sinal do fim dos tempos? O mundo está ao contrário? Perguntas que vêm à tona quando o Íbis contraria o seu DNA e consegue bons resultados. O clube está no Livro dos Recordes como dono da pior sequência da história do futebol, com 55 jogos sem vencer, entre julho de 1980 e junho de 1984 - sendo 48 derrotas e sete empates. Tornou-se a principal referência quando o assunto é perder. Entretanto, a campanha do início da Série A2 do Pernambucano deste ano já figura entre as melhores da história do Pássaro Preto. Aliás, neste domingo, o Íbis pode conseguir um feito inédito em sua história: caso vença o lanterna Centro Limoeirense, no Ademir Cunha, em Paulista, às 16h, emendará quatro vitórias seguidas.

Em seus quase 80 anos de existência, o Íbis só conseguiu vencer três vezes seguidas três vezes - contabilizando a atual. As duas primeiras foram em 1997 e 1999, ambas na Série A2, como agora.

Com 100% de aproveitamento na edição atual da competição, o ‘Pior Time do Mundo’ vive um momento tão bom que pode garantir matematicamente a sua classificação para a fase de mata-mata com cinco rodadas de antecedência. Como avançam quatro equipes no grupo – que tem cinco integrantes -, caso conquiste a quarta vitória consecutiva neste domingo o Rubro-negro fará o returno já mirando o adversário das quartas de final.

Todo esse contexto favorável, frise-se, é fruto de um trabalho de muita superação dentro e fora de campo. Para entender melhor esse novo Íbis, o Superesportes visitou um treinamento do time para conhecer a sua rotina e os responsáveis pelo atual momento. Desde a batalha para manter o dia a dia de treinamentos até a superação financeira como um todo, com alguns jogadores, inclusive, revezando entre o serviço nos gramados e nos restaurantes.

O comandante da nova fase

Peu Ricardo/DP
No futebol, um dos deveres do treinador é conhecer bem o clube onde trabalha. O professor de educação física Ricardo Santos, de 42 anos, é um dos que se encaixa nesse perfil. No Íbis desde 2012, já foi preparador físico e comandou todas as categorias de base, desde o sub-13, até assumir a equipe profissional na temporada passada. Em 2016 esteve à frente do time na Série A2 e não venceu uma partida sequer. Foram oito derrotas e apenas dois empates.

Ainda assim, classificou o time para o mata-mata, graças às punições impostas a Ferroviário e Centro Limoeirense. Com prestígio no clube, foi mantido no cargo e começou a colher os primeiros frutos dessacontinuidade. Exigente com a parte física, cobra bastante comprometimento de todos os atletas e sabe bem o objetivo a alcançar.

“A ideia do Íbis é chegar na Série A1. É o nosso foco maior. O nosso diferencial é o trabalho. A diretoria confiou em mim e me fez permanecer. Isso fez com que os atletas também confiassem”, afirma o treinador.

Comandar no pior time do mundo, obviamente, não é uma tarefa fácil. Pior ainda quando a o trabalho é prejudicado pela falta de espaço e de receita para manter a equipe. “A rotina aqui é sempre difícil. A gente não tem campo para treinar e mal conseguimos arrumar as passagens dos jogadores. Não temos apoio de ninguém, é apenas o presidente (Ozir Jr.) sozinho. Uma vez ou outra aparece um colaborador, mas não é frequente. As empresas ficam receosas em patrocinar pela dificuldade econômica do país, mas é na dificuldade que a gente vai conseguindo o nosso sucesso. É difícil, mas é gostoso”, comenta o técnico.

Para Ricardo, o fato de enfrentar tantas dificuldades fora do campo ajuda os atletas a superar os limites nas partidas. “Nós somos um grupo sincero. Não temos dinheiro, apenas ajuda de custo. É com essa verdade que a gente vem trabalhando e até o momento vem dando certo. Isso tudo ajuda a superação e, jogo a jogo, estamos vencendo.”

Treino na terra batida

Peu Ricardo/DP
De segunda a sexta, exceto nos dias de jogos nas quartas, a partir das 14h30, a comissão técnica e os primeiros atletas começam a chegar no Campo da Aviação, em Maranguape, Paulista. A maioria chega de ônibus de linha. Os poucos que têm moto ou carro dão carona a quem mora pelo caminho, enquanto os que moram mais perto vão a pé ou de bicicleta. Antes de entrar em campo, é preciso esperar acabar o trabalho de equipes de outras categorias que também utilizam o espaço. Às vezes, um sorteio indica qual dos campos o time vai utilizar.

O campo não tem gramado - só nas margens -, não tem vestiários e a única água é trazida pelo time num garrafão de vinte litros compartilhado pelos atletas, tal como nas ‘peladas’. Ainda assim, o ritmo é intenso na parte física, que é o principal fundamento explorado. A tática acaba ficando em segundo plano pela ausência de grama, para evitar lesões nos atletas. Inclusive, desde que começou as atividades visando a Série A2, o time realizou apenas um coletivo.

“De todos os times do campeonato, nós somos o único sem lugar para treinar. Não temos apoio das prefeituras. Tentamos, mas ficou inviável. Tanto Olinda como Paulista nos cederam apenas por um dia para treinamentos no Grito da República e no Ademir Cunha, mas não conseguimos manter essas parcerias.”, afirma o treinador Ricardo Souza.

Ele, no entanto, prefere não focar nas reclamações e adversidades. Enaltece a capacidade dos seus atletas de superar os obstáculos. “Nós somos um grupo sincero. Não temos dinheiro, apenas ajuda de custo. É com essa verdade que a gente vem trabalhando e até o momento vem dando certo. Isso tudo ajuda a superação e, jogo a jogo, estamos vencendo”, disse. “O grupo está dedicado e focado. Uma hora ou outra a gente vai perder, mas o objetivo maior é o acesso. A gente já tem a fama do pior e eles (jogadores) estão querendo mudar essa história.”

Ajuda na venda de ingressos

Os recursos financeiros do Íbis são escassos, como é regra para a maioria dos clubes do interior do estado. Além de pequenas ajudas esporádicas, o clube depende basicamente do investimento do presidente Ozir Jr. para cobrir as despesas, desde a inscrição dos atletas até os custos básicos como viagens, alimentação e taxas dos jogos. Nesse cenário de escassez de recursos, a esperança sempre se volta para as rendas das partidas como mandante no Ademir Cunha. Mas dificilmente dá resultado.

No único jogo que fez como mandante nesta Série A2 até agora, diante do Vera Cruz, o Íbis clube arrecadou R$ 430,00 com os ingressos e, após descontadas as despesas da partida, lucrou apenas R$ 116,95. Uma quantia irrisória para as necessidades do Pássaro Preto.

Com a boa fase e uma atenção maior sobre o time, há a expectativa de um bom público para o duelo com o Centro Limoeirense, neste domingo, às 16h. E ninguém poupa esforços para levar a torcida ao estádio. Além da atuação direta nos bons resultados, os membros do clube, dos atletas à presidência, também atuam como bilheteiros, vendendo ingressos para amigos e familiares. São esperados cerca de 1,5 mil torcedores para gerar uma receita que possa dar maior fôlego financeiro.

Campanha de sócios

Mas o clube não se atém apenas ao trivial para gerar receitas. As ações vão desde o sorteio de camisas até a última campanha de sócios, onde torcedores podem se vincular ao clube a partir da quantia de R$ 2,00. Já no primeiro mês da nova campanha, mais de 500 torcedores se tornaram sócios do clube. A marca atingiu o total de 1.100 associados. Observadas as peculiaridades, o Pássaro Preto é atualmente o quinto clube do estado com maior adimplência, atrás apenas do Trio de Ferro (Náutico, Santa Cruz e Sport) e do Salgueiro. Em troca, o Íbis oferece 50% de desconto no valor dos ingressos - que custam R$ 5,00 - e o direito de concorrer todo mês a um kit oficial do clube, com camisa, calção e meião.

Mesmo sendo um valor praticamente simbólico, o montante arrecadado com a campanha já cobre 10% das despesas operacionais. “Por incrível que pareça, a campanha de sócios está nos ajudando muito. Não é gozação, é um trabalho sério. Espero até que os sócios continuem nos ajudando. Com esse dinheiro que arrecadamos nas urnas (espalhadas por pontos comerciais da Região Metropolitana) nós conseguimos pagar o transporte dos jogadores e também despesas dos jogos”, comenta o técnico Ricardo Souza.

Os antiheróis do Pássaro Preto

Peu Ricardo/DP
Como os demais participantes da Série A2, o Íbis só pode escalar até quatro atletas acima de 23 anos por partida. Por essa razão, 21 dos 25 jogadores que compõem o elenco estão abaixo desse limite de idade. A maioria é fruto do trabalho da base do clube, acompanhado de perto pelo técnico Ricardo Souza. Alguns poucos são jovens relegados em outras equipes em busca de um recomeço no futebol.

Entre tantos rostos e cortes de cabelos inusitados, cada um chama a atenção por uma história pessoal de superação. Há quem more em Goiana e enfrente até três horas de deslocamento para treinar. A realidade financeira dos mais jovens é a mais complicada. Quem precisa contribuir financeiramente em casa, precisa trabalhar fora dos gramados, como é o caso Tello, 23 anos.

Tello joga pelo Íbis há quatro anos e há três também trabalha servindo em uma pequena pizzaria, no bairro de Maranguape. Além da rotina dos treinos, de segunda a sexta, das 17h às 3h30 do dia seguinte, ele dá expediente como garçom. Exceto em dias de jogos do Íbis, quando é “liberado pela patroa”. “Eu trabalho lá há uns três anos e ganhei a confiança da dona Josy. Acertei com ela que, quando é dia de jogo, eu pego mais tarde ou ela me libera para viajar. Ela me ajuda muito. Domingo passado mesmo, depois do jogo com o Ferroviário, passei na pizzaria para falar com os amigos e acabei ajudando no serviço porque o movimento estava grande”, comentou Tello.

O jovem lembra o caminho desde a chegada no clube até a chance como profissional. “Fui para umas peneiras que aconteciam na várzea, mas não colocava muita fé. Só ia porque gostava de futebol, ia mesmo era para jogar. Até que fui aprovado na peneira do Íbis. Era tido como caso perdido, mas o Ricardo me revelou e disse que eu tinha uma chance”, conta, recordando também a diferença de tratamento a partir da boa fase do time. “O pessoal sempre brincava dizendo que a gente ‘só faz perder’, até o meu pai criticava. Hoje eles nos dão os parabéns.”

Tello sonha alto e espera que a nova fase com o Íbis ajude a alcançar um clube com melhor estrutura, que lhe permita largar o serviço como garçom. “A galera fala muito, dizendo que tenho futebol para jogar em time grande. Quem tem dinheiro, tem tudo. Nós aqui não temos dinheiro, mas temos uma grande vontade de ganhar.  Penso em conseguir uma vaga em um time grande e continuar no futebol.”

A experiência de Bebeto

Peu Ricardo/DP
O toque de experiência do Íbis cabe a um quarteto, inscrito na cota dos atletas com mais de 23 anos. São eles o zagueiro Algodão (29), o meia Tiago Mancha (27) e os atacantes Tiago Santos (31) e Bebeto (40). Atletas com rodagem no futebol do interior do estado e que conhecem a realidade da Série A2. São eles os líderes do time em campo.

Caso de Bebeto, que tem o status de ‘estrela’ do time e exerce uma liderança baseada no exemplo. É sempre um dos primeiros a chegar nos treinamentos e um dos últimos a deixar o local. “O Bebeto é um exemplo para os garotos. Para se ter uma ideia, quando terminou o nosso primeiro treino, ele foi correr no campo por conta própria. Isso estimulou os garotos que, aos poucos, se juntaram a ele nas corridas. Ele tem nos ajudado muito, junto com os outros mais velhos também”, afirma o técnico Ricardo Souza.

O atleta reconhece a importância que representa para o grupo e o seu papel para ajudar o Íbis na competição. “Quando decidi jogar no Íbis, pensei que ia dar certo e está dando. O meu critério é de jogar em um time vencedor e o nosso grupo está unido e focado. A galera abraçou a ideia e estamos juntos”, disse.

Ainda de acordo com o atleta, o histórico de derrotas não interferiu na decisão de jogar pelo Pássaro Preto. “Essa história de pior time do mundo é mito. Aconteceu há várias décadas e a gente está com uma nova pegada. Esse título está fora e nós estamos numa caminhada para tornar o Íbis um time vencedor”, afirma Bebeto, que enxerga a equipe com uma longa caminhada pela frente. “Onde o Íbis vai parar, eu não sei. Mas jogo a jogo nós vamos mostrar isso dentro de campo. Vamos buscar as vitórias para chegar à próxima fase, sempre brigando em busca do acesso.”