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REFENO

Da Argentina ao Recife: velejador encara mar sozinho para participar da 31ª Refeno

Aos 68 anos, Carlos contou os perrengues que passou para chegar até o Recife e deu uma aula de como é preciso respeitar a mente e o mar sozinho no barco

postado em 08/10/2019 10:00 / atualizado em 08/10/2019 15:06

<i>(Foto: Tsuey Lan Bizzocchi)</i>
“Me diz uma coisa: Por que entre tantos competidores você escolheu me entrevistar? Não é a primeira vez que dou entrevista. O que tem de especial em mim”? Foram com essas perguntas que o velejador argentino Carlos Ernesto Blanco Fernandez, de 68 anos, terminou a entrevista. Bem, motivos não faltam. Ou vocês não acham que alguém que sai da Argentina, faz mais de quatro mil quilômetros e veleja sozinho até o Recife é uma pessoa sem história? Histórias não faltam para Carlos, que é um dos mais de 600 tripulantes já confirmados para a 31ª Regata Internacional Recife-Fernando de Noronha (Refeno), que terá sua largada neste sábado no Marco Zero.

Natural de Olavarría, há 380 km ao sul da cidade de Buenos Aires, capital da Argentina, Carlos foi pecuarista boa parte da vida e também deu aula por mais de 20 anos - era professor de Economia até se aposentar em março. Mesmo não vivendo perto do mar na infância, viu sua paixão por barcos começar ainda muito novo. Aos 14 anos, construiu seu próprio catamarã. 

“Eu queria ter a oportunidade de cruzar um pequeno rio que passava pela cidade. Meus pais moravam juntos em Olavarría, mas depois tivemos alguns problemas políticos na Argentina. Meu pai teve que mudar de cidade. Essa cidade ficava “águas abaixo” de Olavarría. Sempre pensava que eu iria visitar meu pai no meu bote. Ficava cerca de 80 quilômetros”, relembra.

O tempo passou e Carlos teve trabalhar muito até conseguir uma vida economicamente boa. Mas por motivos políticos, resolveu vender toda sua empresa e mais de mil cabeças de gado para viver do que realmente lhe dava prazer. E desde 2008 passou a se dedicar mais ao barco Wisdom. 

Durante toda a entrevista, ficou claro o respeito que Carlos tem pelo mar e pela paixão que tem pelos mares. “Velejar é a maneira de estar mais perto de Deus. Como é o meu caso, um velejador solitário. É uma situação especial. Se eu perco a fé, eu não velejo mais. E é por essa razão que eu chego. Não vou acreditar que são minhas capacidades que vão me fazer chegar. Tem que ter a ajuda de cima. Porque o que eu faço é difícil, meu amigo. Ficar no mar sozinho sem respostas, falando com você mesmo, você fica louco. Não é fácil”. 

O velejador deixou seu país no dia 1º de março deste ano rumo ao Recife. O objetivo era participar da Refeno e depois seguir o para o Caribe. Mas o plano não saiu como o planejado. E por duas vezes, quase teve que abortar a missão. A primeira delas aconteceu logo que chegou em águas uruguaias. Uma tormenta com ventos a 120 km/h quebrou duas velas do seu barco. Teve então que retornar a Argentina e gastar cinco mil dólares em concertos. 

Consertado, Carlos voltou ao Wisdom passa prosseguir viagem até chegar em Rio Grande (RS). Lá, quando se preparava para fazer um trecho até Florianópolis, deve uma nova complicação. Um dor insuportável o fez ficar uma semana no hospital tomando morfina. Resolveu voltar para a Argentina, desta vez de ônibus, para se consultar. “Chegando o médico me falou que eu tinha dois caminhos: cirurgia ou seis meses de repouso. Por sorte não fiz nenhuma das duas. Voltei para Rio Grande quando fiquei um pouco melhor. Voltei para o barco e, em 10 dias, estava bem melhor e peguei o mar e para chegar ao Recife”, conta. 
 
<i>(Foto: Tsuey Lan Bizzocchi)</i>
 

VELEJAR SOZINHO

Carlos aprendeu a respeitar o mar. Por isso, tem uma técnica que usa para não “perder a mente”. Coloca um relógio despertar a cada 15 minutos. “Deito aqui e controlo. E é isso durante dias. Então o primeiro e segundo dia são mais normais. No terceiro dia você começa a escutar coisas que não existem. E olhar coisas que não existem. Temos que ser sinceros nesse aspecto e não quero ser arrogante porque o mar me ensinou a ser humilde. Uma coisa é velejar com tripulação. É um esporte. Velejar sozinho é outra coisa. É outro esporte. O problema de um velejador solitário é o cérebro. Porque por uma situação de sobrevivência, o cérebro vai te dizer qual o caminho mais fácil. Mas não é o caminho ideal. Provavelmente o caminho mais fácil é que eu coloque esse relógio a cada meia hora, ou duas horas. Por exemplo: no primeiro dia você coloca a cada 15 minutos e nada acontece. No outro dia você saiu achando que ia morrer, mas chegou. Então no próximo dia o que o seu cérebro vai te diz? Coloque a cada duas horas. Nada vai acontecer. Se você fica escutando seu cérebro é muito provavelmente que você afunde”, relata.

Quando perguntado se viajar era “maluquice”, Carlos caiu na risada. Mas depois, em tom mais sério, explicou e citou novamente o poder da mente. “É normal que pensem que sou maluco para fazer o que eu faço. Eu também tenho essa dúvida. Mas tem que ter. Porque enfrentar o mar é muito difícil. Acho que velejar qualquer um veleja. Mas controlar a mente é outra coisa. A técnica marítima é secundária. Ajuda. Mas primeiro é a mente. Se você não controla a mente, não vai ter poder de observação. E se não tem poder de observação para se antecipar sobre o que vai acontecer, você vai afundar”. 

SEGUNDA REFENO

A 31ª Refeno será a segunda vez de Carlos. Ele participou da edição de 2016. Perguntado sobre o que ele esperaria da competição deste ano, novamente o respeito pelo mar veio em primeiro plano. 

“Tenho que ter muito cuidado com o que falo porque tem gente que acha que é uma coisa especial, e eu acho que para fazer a Refeno, que são 300 milhas… Bem, eu fiz 2.600 milhas (da Argentina até Recife). Então, tudo merece prudência, cuidado… O mar é incontrolável. Pode ser que fique complicado. Vocês têm o swell, que é muito complicado. Se Deus quiser não teremos isso de novo - aconteceu na chegada dos barcos na edição do ano passado em Noronha. Mas os mares do Sul são muito mais complicados. Quando saímos daqui já sabemos o vento que vamos ter”, finalizou.

TOME MAIS HISTÓRIA

Como vocês perceberam, histórias não faltam para seu Carlos. Tanto que o gravador já tinha sido desligado quando ele contou mais uma - mas não menos importante. Contou que no dia 10 de fevereiro de 2016, quando estava a 100 km da costa brasileira e a 260 km ao sul da bacia de Santos, foi atingido por um raio. Naquele dia, 5260 raios atingiram o estado de São Paulo. 

O impacto quebrou o mastro e abriu um buraco de dois metros e meio na cabine do Windom. Seu Carlos também foi atingido - acabou ficando surdo do ouvido esquerdo. Com o barco danificado e sem ajuda de aparelhos, velejou dois dias até chegar ao Iate Clube de Santos.  

“Não fiquei à deriva porque pude controlar mais ou menos o barco. Fiz uma vela improvisada e com ela velejei dois dias. Com o auxílio da minha fé. E um terço (neste momento ele tira o objeto debaixo da camisa e mostra para a reportagem). Este terço foi a única coisa inteira que achei quando caiu o raio. Estava embaixo da escada. Fiquei com ele dois dias na mão, com as ondas passando por cima de mim. Cheguei dois dias depois ferido no Iate Clube de Santos”, finaliza.