De volta aos jogos, após parada por pandemia, Flamengo vence Bangu por 3 a 0 (Foto: Alexandre Vidal/Flamengo)
As 70 horas
Das primeiras horas da terça aos últimos minutos da quinta-feira, o futebol brasileiro viveu uma sequência surreal de acontecimentos. Todos calculadamente interligados. Peças soltas de um quebra-cabeças que, quando montado, se revelou uma imagem triste. Assustadora. Durante 70 horas, o futebol nacional reviveu seus piores momentos. Um retrocesso de décadas em menos de três dias. Voltamos ao tempo das viradas de mesa na madrugada, das negociatas com políticos, dos jogos sem transmissão de TV, das cartas marcadas, das decisões impostas sem debate, da falta de conexão com a sociedade, do circo. As consequências virão. E são, ainda, completamente imprevisíveis.
Tudo pode acontecer nos conselhos arbitrais do futebol do Rio de Janeiro. Tudo. Das fórmulas mais absurdas de campeonato às viradas de mesa mais escandalosas. Mas, desta vez, a Ferj e os clubes foram além. Na madrugada da terça-feira - depois de oito horas de reunião - veio a inacreditável notícia que, dois dias depois, Flamengo e Bangu entrariam em campo para retomar o Estadual. Naquele dia, o Rio de Janeiro ultrapassou a marca de oito mil mortes causadas pela Covid-19. Eram mais de 85 mil casos confirmados. Naquele dia, dois clubes - Fluminense e Botafogo - sequer haviam retornado aos treinos. Mas, naquele dia, nada disso importava. Milhares de pessoas contaminadas, famílias destruídas pela morte de pais, mães, irmãos e irmãs, atletas profissionais longe da condição física ideal, protocolos de segurança ainda sendo estabelecidos. Nada importava. Naquele dia a única coisa que importava para a maioria dos que estavam na reunião virtual era o retorno do futebol.
O “desespero” do Flamengo
Até então parecia inexplicável a obsessão da direção do Flamengo pelo retorno precipitado. A imposição para a volta do Carioca não gera influência direta na aceleração do calendário programado pela CBF. Em São Paulo, por exemplo, os clubes só estão autorizados a retornar aos treinos no primeiro dia de julho. Serão pelo menos 20 dias de trabalho até o retorno do Campeonato Paulista. E, pelo menos, mais 20 dias para que este seja finalizado. Exatamente no “limite” traçado pela CBF - que projeta o retorno do Campeonato Brasileiro para a segunda quinzena de agosto. Algo que eu esbocei aqui na coluna semana passada a partir do planejamento do Campeonato Gaúcho, cuja data de reinício está agendada para 19 de julho. Uma margem segura para um estado com apenas 350 mortes (23 vezes menos que o Rio de Janeiro). Na terça-feira, o presidente do Avaí, Francisco Battistotti, confirmou essa informação contida em um documento da CBF sobre a volta da Série B. Tudo estava se alinhando em torno dessas projeções. A própria Copa do Nordeste desenhou uma saída para seu imbróglio. Então ficava no ar a pergunta: Por que o “desespero” do Flamengo para voltar a jogar se o clube só teria seis partidas para disputar até a metade de agosto?
A canetada
Nas primeiras horas da quinta-feira, a resposta. E esta veio pelas mãos do presidente Jair Bolsonaro que, no dia anterior, estava usando um broche do Flamengo durante a cerimônia de posse dos novos ministros. Na plateia, lá estava o presidente do clube rubro-negro, Rodolfo Landim. Os dois tornaram-se próximos nos últimos meses. Um movimento claro do presidente da República para tentar minimizar o forte processo corrosivo que vem enfrentando. Mas qual o interesse de Landim? O que o Flamengo ganharia com esta associação política? A contrapartida de Bolsonaro tornou-se pública naquela manhã, com a publicação da Medida Provisória 984. Em uma canetada, sem qualquer debate nacional, o presidente determinou uma revolução nos direitos de transmissão de jogos de futebol no país. A partir dali, os clubes mandantes passaram a ter 100% do direito das partidas e podem negociá-las livremente. Este é um tema interessante, que gera interpretações e projeções antagônicas. E que deve sim ser amplamente estudado e debatido pelos clubes e mesmo pela sociedade. O que não faz o menor sentido é que isso seja imposto por uma MP. Qual a urgência para que este tema leve um Presidente da República a assinar uma MP (cuja validade é de 60 dias podendo ser ampliada por mais 60)?
O quebra-cabeças montado
Hora de encaixar todas as peças. O Flamengo recusou a proposta de R$ 18 milhões da Rede Globo pelos direitos de transmissão do Campeonato Carioca. Assim, a TV não pode exibir nenhuma partida envolvendo o clube, mas este também não poderia negociar suas transmissões porque todos os adversários têm contrato assinado com a Globo. Com esta MP válida por 60 dias, o rubro-negro ganha a liberdade de poder vender todos os jogos em que for mandante. Entre eles, a final do Estadual. É a única forma que o Flamengo tem para recuperar ao menos uma parte do prejuízo - agravo com a pandemia e suas consequência. Para ser claro: Nestes 60 dias, nenhum outro clube do Brasil poderá usar a MP-984. Todos estão presos em contratos assinados com a Globo ou outras emissoras. Ou seja foi uma medida direcionada só para o Flamengo. Caso seja renovada por mais 60 dias, o Athletico/PR também será beneficiado, já que não assinou contrato na Série A no segmento do pay per view. O Furacão ganharia o direito de vender livremente todas as partidas em que for mandante durante dois meses de Brasileiro. E pronto. Depois disso, a MP desaparece. Deixa de valer. O poder de decisão sai de Bolsonaro e vai para o Congresso - o que, naturalmente, permitirá um maior debate nacional sobre o tema. Era esse o caminho lógico, correto e democrático.